Entrevista

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“O sistema internacional não está a funcionar correctamente e se impõe uma revisão da ordem mundial”

As palestras que proferiu foram, sem dúvidas, autênticas aulas de sapiência. Embora tenha, reiteradas vezes, alertado que as suas posições não vinculam a Embaixada e Governo do Reino de Espanha, nem mesmo a União Europeia, José Ignacio Torreblanca mostrou-se confiante numa África desenvolvida

06/10/2023  Última atualização 11H17
Cientista político espanhol José Ignacio Torreblanca © Fotografia por: Vigas da Purificação| Edições Novembro
Quais são os grandes desafios da cooperação internacional?

Há, actualmente, o desafio da revisão da ordem mundial. É visto e sabido que o sistema internacional não está a funcionar correctamente, o que foi possível ver durante a pandemia. A Organização Mundial da Saúde (OMS), por exemplo, não funcionou para questionar de facto sobre a pandemia da Covid-19 e tudo se resumia num aparente conflito entre a China e os Estados Unidos. Também se viu um exagerado proteccionismo económico e comercial e a própria Organização Mundial do Comércio (OMC) não pode parar com as sanções comerciais existentes, mesmo sendo muitas delas arbitrárias. A própria segurança e o direito internacional foram como que atropelados de forma propositada repetidas vezes. Em suma, os grandes desafios da cooperação internacional são de âmbito político, económico e de governação.

A cooperação económica e nos negócios vai ser capaz de vencer os objectivos políticos dos Estados?

Como disse, temos ao nível global, e ainda por resolver, problemas políticos, económicos e ideológicos. A integração política é necessária para garantirmos instituições internacionais neutras, fortes e mais voltadas para os problemas globais. Contudo, o mundo debate-se com problemas económicos, muitos dos quais gerados por sanções arbitrárias aplicadas a alguns países sob influência de outros. O mundo quer industrializar-se mas protegendo-se, de maneira que assistimos a uma fragmentação ou desglobalização do mundo. Não menos importante é que temos também um problema de regressão democrática. As democracias são, hoje, cada vez mais fracas, instáveis e ignoradas em muitos casos.

Afinal, qual o seu conceito de democracia e por que razão há vozes a falar em democracia africana? Oque é isso?

Em geral, o substantivo democracia não carrega consigo nenhum adjectivo. Quanto mais adjectivos serem introduzidos, pior, porque com tal ideia o que se procura são excepções, qualificações do substantivo. Democracia é o poder do povo, pelo povo e para o povo. Ela apenas deve ser representativa, livre e competitiva em fase de eleições e apresentar resultados. Explico-me: a democracia é para o povo (pelos resultados), pelo povo (porque há procedimentos a respeitar) e do povo (porque este é um modo de vida colectivo).

É assim em Espanha ou ao menos na União Europeia?

Em Espanha também já tivemos adjectivos aplicados à democracia.Mas em suma, e como em toda a parte, a democracia pode apresentar variações em algumas ou muitas coisas, mas tem de ser um sistema que se resume no poder do povo de eleger os governantes e tirá-los quando governam mal, por via de novas eleições, conforme o ciclo definido por lei. É universal. Pode ser Presidencialista, Parlamentar, Estado Federal, Unitário, pode ser uma Câmara... dá tudo por igual. O importante é que o cidadão tenha a última palavra. Seja ele a decidir por escolha livre.

O que pode vir a prejudicar uma democracia?

Há duas coisas que corroem uma democracia: as desigualdades e a corrupção.

Como devemos alimentar então uma democracia?

Uma forma de alimentar a democracia é pela promoção da educação. A educação é uma política democrática, porquanto uma população não educada jamais poderá exercer os seus direitos, pois os deconhece. A saúde também é outra política democrática. Pode-se dizer que a democracia é o cidadão desenvolver sua actividade pessoal, mas também exercer os seus direitos políticos e civis de escolher os governantes do seu país.

Mas...África insiste que se deve considerar um modelo de democracia africana...

Não há nenhuma característica própria dos africanos que os impeça de ter uma democracia completa. Em Espanha, há alguns anos, foi dito que os cidadãos não estavam maduros para a democracia. Os adjectivos, lembro, (des)qualificam. E se democracia africana significar outra de menor qualidade, então não é democracia. Agora, também podemos concordar se demo- cracia africana significar adaptação ao contexto local, compreensão dos próprios caminhos, não copiar instituições que depois não funcionam e, sobretudo, reforço da promoção da pluralidade da sociedade, então estamos de acordo. Pode chamar a isso "democracia africana”. O mais importante é o povo, livremente, escolher os seus governantes.

Tem exemplos de projectos falhados de democracia?

A América Latina, por exemplo, cometeu um grande erro ao copiar o sistema presidencialista dos Estados Unidos da América, pois o mesmo nos EUA garante estabilidade, mas na América Latina apenas muita instabilidade. Já a Europa tem um modelo mais parlamentar, desde que funciona, está bem. Repito: mais importante é nenhum modelo impedir o exercício livre da cidadania.

Diz que a Europa não quer ser imperialista. Não vos preocupa a corrida ao imperialismo, seja pelo entendimento que se tem do conflito Rússia-Ucrânia ou mesmo das disputas EUA-China? Como se vão posicionar nessa nova geopolítica internacional?

A Europa é um projecto de paz e que pretende superar os impérios e os imprialistas do passado. Os conflitos entre os Estados europeus e os impérios europeus sempre se converteram em conflitos mundiais. Depois da 2ª Guerra Mundial, a Europa entrou num período de desimperialização e temos procurado construir e fazer do projecto europeu um pilar de paz global. A União Europeia é prova desse compromisso de instituições fortes, comuns e que nos obrigam a partilhar valores; substituir nossos Estados por Estados-membros, através de acordos que engajam todas as partes.

Acha a Rússia um problema para a Europa?

O problema que temos com a Rússia é exactamente esse. A Rússia quer ser um império e nós não mais aceitamos nem queremos estes modelos, seja nos nossos países-membros, seja mesmo no continente. Sobre as disputas EUA-China, a verdade é que mantemos relações com ambos os países. Há, contudo, a realidade de que os EUA são uma democracia, o que aproxima os seus valores aos defendidos pela Europa. Ainda assim, da parte europeia tudo será feito para que estes conflitos não se alastrem para o resto do mundo, envolvendo outras nações. A Europa continuará a negociar com a China, mas o que não se permitirá é depender destas trocas e a mesma vir a ser usada no futuro como moeda de arremesso, tal como fez a Rússia com o fornecimento de gás, petróleo e electricidade, por exemplo. Ainda assim, temos de ser capazes de evitar que estas tensões existentes entre EUA e China possam transpôr fronteiras e envolver outros Estados.

Estamos perto ou distantes de uma nova guerra fria entre EUA e China?

O certo é que não estamos diante de uma "guerra fria” no âmbito económico e comercial, porquanto China e Estados Unidos realizam comércio entre si e os dados mais recentes apontam em milhares de milhões de dólares o comércio bilateral entre os países. A China possui em reservas mais de um bilião de dólares dos Estados Unidos. Há, contudo, uma tendência de avanço de "guerra fria” no domínio tecnológico. Os EUA proibiram a importação de chips de última geração de fábrico chinês, além da exportação de componentes de IA (Inteligência Artificial) e as tecnologias de supercomputação.

Parece-nos muito crítico ao uso da política de embargo económico de um Estado contra outro. Todavia, a Europa adoptou igual medida contra a Rússia...

A Europa aprovou desde o princípio um pacote de medidas de sanções contra a Rússia: congelamento de contas, não utilização do sistema internacional "Swift” e o congelamento de bens dos oligarcas. São sanções muito duras. Mas, é importante notar que as sanções foram e somente para a Rússia, sem abranger os países que realizam trocas com aquele Estado. Essa posição da Europa visa não gerar efeitos secundários nas medidas adoptadas, porque o continente europeu já sofreu anteriormente quando os EUA romperam com o Irão e acabaram por sancionar também as empresas europeias dentro das medidas adoptadas.

Está a sugerir que consideraria agressão apenas se a medida se estendesse a empresas e países que efectuam trocas com a Rússia?

A questão da Rússia é excepcional e deve-se ter em conta, tal como referi atrás, que a Europa é um projecto de paz. Desde logo, não pode apoiar ideias imperialistas. A anexação de territórios ucranianos é para nós um abuso do direito internacional por quem devia cumpri-lo.

"Cada país deve encontrar a melhor fórmula...”
Acredita e recomenda o modelo de desenvolvimento adoptado no seu continente para o caso de África ou mesmo de Angola?

Cada região, território ou país deve encontrar a melhor fórmula de cooperação que funcione. O modelo europeu é mais exigente, na medida em que dá primazia aos direitos comunitários sobre os direitos nacionais; os tribunais europeus podem sancionar os Estados; há um Parlamento que produz legislação comunitária com efeito directo sobre as legislações nacionais. É um modelo que exige muita partilha, inclusive os Estados não podem celebrar acordos comerciais bilaterais. Com isso quero dizer que cabe a cada país adoptar o modelo que melhor se adeque à sua perspectiva de desenvolvimento.

Se o modelo da UE é bom, porquê é que só 27 países aderiram ao bloco até ao momento?

Todos são livres de escolher aderir ou não. Cada um verá as vantagens e desvantagens. No caso de Espanha é claro que a adesão trouxe maior desenvolvimento. O país melhorou a economia e fez-se mais próspero, além de adoptar regras políticas favoráveis fruto da integração. O processo de adesão foi fundamental para os resultados que a Espanha apresenta na política, na economia e na sociedade. Foi como abrir o país e receber influências positivas. A União Europeia fez da Espanha um actor mais sólido, mais forte e mais activo mesmo na América Latina.

As migrações das populações, sobretudo de jovens, são preocupações para a Europa?

Há um grande desequilíbrio demográfico entre África e a União Europeia. O desafio não é apenas demográfico. As migrações de jovens sem qualificação são um peso para o país de destino. Este processo acaba por resultar numa frustração para o jovem e também para a sociedade que o recebe. Não se pode emigrar para viver nas ruas e isso às vezes é um problema de qualificações individuais.

O que sugere para travar ou reduzir este fenómeno?

É importante definirem-se programas de educação nos países com alto fluxo de migrações. Faz todo o sentido conseguirmos identificar quais as necessidades do país de destino para podermos formar e gerar oferta de qualidade a partir da origem. Por exemplo, a Espanha tem acordo de migração circular com o Marrocos, através do qual capacita os jovens marroquinos para trabalharem no sector de serviços espanhol e até vão à Espanha apenas para uma espécie de estágios e muitos depois regressam ao seu país sem ter de abandonar as famílias. Temos de conseguir gerar fluxos de migrações mais inteligentes. Contudo, devo dizer que o fluxo de pessoas que entram legalmente na Europa e em Espanha, particularmente, é muito maior que os números que são mostrados nas televisões só para criar um drama com a emigração clandestina.

A Europa, precisamente países como Espanha e Portugal,  tem tirado o melhor proveito da relação com África?

É um grande activo. A língua e o conhecimento dos costumes são dois factores importantes. Angola e Portugal estão mais ligados do que em relação à Espanha, mas os governos trabalham todos os dias para uma cooperação mutuamente vantajosa entre os países.

Porquê é que afirma que a inflação é o imposto dos pobres?

Digo isso porque a inflação reduz o poder de compra do cidadão e o rico tem suficiente para conseguir suportar os efeitos de qualquer depreciação da moeda e de aumento de preços. O mesmo não se pode dizer do pobre. É sempre o que acaba penalizado quando há uma forte alta de inflação, que provoca aumento dos preços dos bens.

"A União Europeia entrou para uma fase de instrospecção”
O que achou de Angola nessa sua primeira visita?

Bom... eu vim para Luanda (Angola) com muita abertura e vontade de escutar e aprender também. Durante o último ano e meio, isso depois do início da guerra na Ucrânia, em todas as conversas que mantemos, através de seminários, palestras ou outras, as mesmas dão um forte interesse ao tema do Sul Global. Durante a pandemia, a União Europeia viveu uma fase de introspecção e da necessidade de dar maior atenção aos próprios problemas.

Mas parece que a Covid-19 e depois o conflito Rússia - Ucrânia interrompeu esse momento de introspecção da Europa...

No período pós-Covid-19, eram precisos mais de 750 mil milhões de euros para a plena recuperação da economia europeia, mas surgiu logo a guerra na Ucrânia. Isso obrigou a Europa a começar a olhar, novamente, mais para o mundo. E, numa primeira fase, na Assembleia das Nações Unidas, muitos países se abstiveram na votação de condenação contra a Rússia. Foi daí que se notou, mais uma vez, um grande número de países críticos às políticas de financiamento e de desenvolvimento da Europa. Apesar disso, muitos tomaram consciência dos desafios internacionais e condenaram a Rússia. A partir desse ponto iniciaram-se conversações.

Qual foi a finalidade destas conversações?

Para a Europa, era importante esclarecer a nossa posição aos parceiros africanos, sobretudo, mas também a outros blocos e regiões, incluindo os BRICS ou mesmo as posições de ministros dos Negócios Estrangeiros ou Relações Exteriores nos seus encontros. Por isso, achei interessante o convite para vir a Angola, no âmbito da presidência rotativa de Espanha ao Conselho da União Europeia, de Julho a Dezembro deste ano. Senti que esta era uma enorme oportunidade de conversar e ouvir posições, que não as tinha directamente. Nos encontros em que participei no Instituto Camões ou mesmo na Escola Nacional de Administração e Políticas Públicas (ENAPP), ambos em Luanda, tive a oportunidade de dialogar com políticos, estudantes, professores, gestores e outras franjas da sociedade, e aí ouvir as suas legítimas posições sobre este ou aquele assunto.

Está a dizer que os diálogos foram muitos voltados a reivindicações?

Logicamente que não. Falamos sobre vários assuntos, incluindo reivindicações legítimas sobre a cooperação voltada para o desenvolvimento, e, tal como disse, vim com a expectativa de escutar em primeira mão o que sectores de forte influência pensavam sobre este ou aquele assunto. Isso é muito diferente do que quando escutamos nas televisões ou lemos as notícias. Em suma, vim com uma mentalidade positiva, mas, claramente, com muito pouca informação e isso ajudou muito a manter-me proactivo nos diálogos com as diferentes entidades e eventos em que estivemos. Foi possível ver e ouvir as posições de governantes, de deputados, de académicos das universidades angolanas e também da sociedade, tornando tudo mais interessante ainda.

PERFIL
José Ignacio Torreblanca Payá

É um académico, analista e cientista político espanhol. Trabalhou como redactor de opinião no Jornal El Mundo (2018) e foi editor de opinião do Jornal El País (2016 a 2018).

LIVRO

La fragmentación del poder europeo (A Fragmentação do poder e uropeu”.

FORMAÇÃO

 Universidad Complutense de Madrid (1997).

FUNÇÃO ACTUAL

Director do Gabinete de Madrid do Conselho Europeu de Relações Exteriores, desde 2018.

VIDA ACADÉMICA

Professor Titular no Departamento de Ciência Política e de Administração da Universidade Nacional de Educação à Distância (UNED)

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